sábado, março 20, 2010

Confiança

Artigo de Opinião















Rui Seybert Pinto Ferreira

O Prof. José Oliveira primeiro convida-me a ler e comentar o seu blog. Como não só o fiz, mas também com entusiasmo e me pus a comentar todas as entradas, apanhei logo a seguir com o desafio de escrever um texto para o seu blog. O assunto deverá ser sobre uma conversa, à longo tida, em Maputo. Nessa altura conversámos sobre o meu fascínio pela autobiografia de Alan Greenspan, ‘The Age of Turbulence’ e da sua relevância para o meu desafio profissional de então, em gerir um banco especializado em microfinanças. Esse livro teria sido para mim a última fonte que eu procuraria para me inspirar e guiar em África. Acontecimentos posteriores provaram quanto apropriado foram as considerações abstractas do Dr. Greenspan! Inclui já há bastante tempo no meu blog (em inglês) um comentário sobre o livro, como ele se aplica aos países em desenvolvimento e o efeito perverso da ajuda económica e ao desenvolvimento do mundo ocidental a estes países.


Para efeitos do blog ‘Macroeconomicus’, vou tentar destilar um elemento essencial para a criação de riqueza, tão bem descrito por Alan Greenspan nesta sua autobiografia. Gostaria de esclarecer o leitor, que para mim criação de riqueza é sinónimo de crescimento e desenvolvimento económico. Para Greenspan, criação de riqueza é também sinónimo de deter uma ‘higher existence’. Mas essa, é outra discussão...

Que elemento essencial é este então? E não só é essencial como muito ignorado, desconhecido até. Trata-se da necessidade de se poder confiar na palavra do outro. Eu prefiro criar um termo. É preciso haver ‘confiança social’.

Para permitir que o leitor chegue à mesma conclusão, tenho que fazer uma breve exposição. Não escondo que a baseio largamente no livro ‘Age of Turbulence’.

Para mim, o mais forte motor para o crescimento e desenvolvimento económico é a concorrência entre os agentes económicos. O resultado dessa concorrência é a obtenção de uma vantagem comparativa para um, ou sobre outro, agente económico. Esta vantagem competitiva monetisasse com um valor acrescentado, pelo qual o agente económico pode cobrar uma margem de lucro. O crescimento e desenvolvimento económico obtêm-se via o crescimento dessa margem de lucro ou pela manutenção da mesma, mas com menos recursos. A este último processo damos o nome de produtividade. É então via o aumento ou a diminuição da produtividade dos vários agentes económicos, que podemos medir se uma economia é, ou não é, competitiva.

Aliás, é também a concorrência que faz as crianças aprenderem e nós, a escolher os nossos parceiros. Mas também essa, é outra discussão...

Ora como podemos criar um ambiente de alta produtividade, que produza múltiplas e multidimensionais vantagens comparativas, que acabam por tornar numa economia sustentavelmente competitiva?

Porquê uso agora a palavra ‘sustentável’? Todos sabemos como podemos ser competitivos sem sermos sustentáveis. Basta lançar estímulos fiscais, programas de investimento, imprimir dinheiro, criar déficites, aumentar a inflação, desvalorizar a moeda, criar riqueza aparente nessa moeda mas pobreza real para com moedas contra as quais desvalorizámos...

Voltemos então ao honrávil raciocínio mas de criar riqueza sustentávelmente.

Considero que existem duas principais alavancas.

A primeira e a mais importante, é a de haver direitos contratuais e de propriedade sancionados por uma parte independente e neutra. Esta parte tem que ser o aparelho judicial do Estado.

Pois se assim não fosse, se não o pudessem deter, a que propósito é que os agentes económicos se iam esforçar por acumular o capital necessário para o crescimento económico? Um exemplo crasso, e não do Dr. Greenspan, seria para quê comprar um escravo nos países então sulistas dos EUA, se depois não me posso beneficiar do trabalho dele, devido a uma expropriação, rapto, fuga ou imposto arbitrário e discriminatório?


No seu mais cru e essencial, a vida humana necessita de bens físicos tais como comida, roupa e casa. Como tal, o ser humano têm que ter o direito de proteger o título legal de propriedade desses bens, mas também da sua transferência como, quando e para quem quiser. Qualquer limite nestes direitos têm um impacto negativo no valor dos bens.

Mas uma mais aprofundada análise deste tema mais conhecido dos estudiosos de economia, e o seu impacto no crescimento e desenvolvimento económico, terá que ficar para outra altura.

Neste texto quero-me concentrar na segunda, e mais ignorada, alavanca: a tal ‘confiança social’.

Aonde existe e vive a lei, é impressionante constatar qual pequena parte de contratos necessita de ir a tribunal para ser executada. E isto, apesar do direito dos agentes económicos em buscar ajuda e opinião aos tribunais. De facto, se assim não fosse, não só os tribunais estariam totalmente atulhados, como a capacidade da sociedade de viver, com e pelas regras da lei, estaria gravemente comprometida.

Sim, eu sei como está a justiça em Portugal e sim, eu li ‘Justiça à Portuguesa’ pelos irmãos Contumélias.

Mas será um acaso que o crescimento económico de Portugal têm sido um marasmo desde que a justiça deixou de funcionar?

E não será que apesar de todo os litígios e das más leis, só uma muitíssima pequena parte de desavenças leva ao imobilismo económico e ao litígio oficioso? Peço ao leitor de, por um minuto, tentar avaliar as milhares, se não milhões, de transacções diárias na economia. Quantos litros de leite em condições de consumo são comprados? Quantas receitas médicas fielmente medicadas por farmacêuticos? Quantos pneus e óleos de motores correctamente trocados? Quantos bens transportados de um lado para o outro por terceiros? Quantos veículos conduzidos por motoristas e não os seus donos? Todas estas transacções carecem de confiança mútua e bloqueariam a actividade económica se necessitassem de advogados e tribunais. Foi esta a minha experiência em África e esta não pertence a este blog, mas o essencial de confiar na palavra do outro, é igualmente muitíssimo válida, se não mais, no mundo desenvolvido.

Já vimos portanto de, como no fundo, a grande maioria das nossas transacções económicas são baseadas na ‘confiança social’. Por outras palavras: Essas transacções têm que ser feitas numa base VOLUNTÁRIA! Se não fosse voluntária, como é que os agentes económicos iam confiar nos outros? Quantos negócios não poderiam ser feitos se não houvesse esta confiança?

Se portanto, contratamos trocas comerciais voluntariamente com agentes económicos em que confiamos para o fazer, significa isso que a nossa reputação, como a deles, têm um alto valor económico.

Se não há reputação, aumentam os custos da transacção, exige-se garantias, seguros, pré-pagamentos e juros mais altos. Por outras palavras, muitas transacções deixam de ser rentáveis e não se fazem e por conseguinte, baixa o crescimento e desenvolvimento económico.

Mas a influência mais poderosa que falta de reputação entre agentes económicos trairia para uma economia, seria sem dúvida a limitação na especialização de cada um; a impossibilidade da subcontratação, de dividir tarefas e de cada um se concentrar naquilo que faz melhor, naquilo em que maior vantagem comparativa têm, aonde maior pode ser a margem de lucro. Por outras palavras, a produtividade de cada agente económico iria baixar ou ficar limitada. Ora, como vimos acima, sem produtividade não temos crescimento económico sustentável.

E chegamos assim ao essencial da minha tese. Será que não estamos num declínio civilizacional aonde a palavra e a reputação têm cada vez menos adeptos? Será que o crescimento e desenvolvimento económico de duas décadas, via doações (da UE) , o aumento do endividamento do Estado e dos seus cidadãos e a inflação e desvalorização do Escudo (pré Euro), não foi insustentado? E será que esta falta de disciplina não levou a uma deterioração da necessidade de reputação e da ‘confiança social’? E não terá sido isso que levou a um sobrecarregamento de tribunais e a um desrespeito pela lei? E não terá sido isso que levou, por sua vez, a más leis, facilitadoras para quem as escreve e aprova? E, finalmente, não terá sido isso que atraiu os perfis e personalidades errados para os postos errados?
 
Se assim for, fica claro o que fica por fazer para alterar a situação. Temos que reintroduzir as regras naturais para o crescimento e desenvolvimento económico. A partir daí, o círculo vicioso torna-se em um círculo virtuoso. Isto, simplesmente porque os intervenientes do círculo vicioso já não têm uma vantagem comparativa sobre os do círculo virtuoso. Será que devo que traduzir isto por miúdos?

3 comentários:

Humberto costa disse...

Caro autor,

li o seu artigo com atenção e admiração. Efectivamente o tema escolhido nao é fácil e apesar da economia estudar largamente a questão da confiança entre os agentes penso que é algo que é pouco discutido. No entanto arrisco-me a dizer que o tema é mais das áreas da sociologia ou psicologia ou até da política do que da economia. Eu digo isto porque como estudante da economia li, ouvi e estudei a racionalização dos agentes econômicos.
Esta racionalização no entanto é cada vez menos sentida ou vista, na minha opinião. No entanto penso que a questão se prende mais com as culturas em si. Todos sabemos que a cultura latina tem mais problemas em seguir as suas regras e como exemplo disso temos os países da américa latina onde a confiança deve ser uma espécie em vias de extinção se é que alguma vez foi espécie.

No entanto conforme foi mencionado e nao querendo ser repetitivo penso que um grande factor para a nao existência de confiança é o fraco sistema judicial. Efectivamente as transações econômicas necessitam de confiança no entanto, apesar de leigo no assunto, no que toca ao microcredito penso que a questão é mais complexa.

Eu sou um grande apoiante do microcredito mas também sei que o sistema só funcionará se as fundações estiverem bem acimentadas ou seja se houver um sistema judicial e regulador eficiente e estável.

No entanto nao tenho a menor dúvida que para os países em vias de desenvolvimento o microcredito poderá ser uma ferramenta para fomentar o desenvolvimento econômico, no entanto o seu desenvolvimento nao será através das economias desenvolvidas pois essas a história já provou que têm objectivos muito diferentes.

Jose Paulo Oliveira disse...

A confiança é absolutamente fundamental para a criação de valor numa sociedade capitalista, aliás a base do sucesso deste sistema económico tem sido precisamente a conjugação das possibilidades de resposta a motivações individuais com a confiança mútua entre os agentes económicos. A capacidade que as sociedades capitalistas tiveram de dar resposta aos indivíduos e a articulação estabelecida nas relações económicas garantiu a sobrevivência deste modelo, ainda que pautado por injustiças sociais e milhões de deserdados da fortuna, face aos sistemas ditos comunistas, onde não existiam afinal menos deserdados, que falharam essencialmente na missão de criarem um Homem Novo. Talvez a diferença esteja na natureza humana…
O meu amigo Dr. Rui Seybert aceitou o desafio, que lhe lancei na sequência de me ter dado o privilégio de ouvir as suas ideias sobre o assunto há alguns meses em Maputo, de dissertar sobre este tema que, apesar de fundamental, continua a ser tão esquecido. É um privilégio para o Macroeconomicus ser guardião desta reflexão que nos abre a porta da compreensão sobre o nosso futuro colectivo, caso não alteremos profundamente os comportamentos sociais e não regressemos ao essencial dos valores éticos e morais. A crise dos valores leva-nos à crise económica! Talvez, afinal, esta seja uma ideia verdadeiramente revolucionária, pelo menos para o pensamento económico dominante.

Rui Cardoso Pedro disse...

Caro,

É uma reflexão interessante e que passa ao lado de alguns..

Apesar de tudo no seu artigo que considero muito bom, acho que não tocou num assunto que considero estar correlacionado com a "Confiança Social", o grau de instrução da população.

Penso e gostaria de ter uma opinião sua relativamente a este assunto, populações com grau de educação mais elevados, tendo deste modo, mais conhecimentos, leva a uma desconfiança social.

Já o próprio Rei Salomão dizia, "Quanto maior a sabedoria, maior o sofrimento, quanto maior o conhecimento, maior o desgosto". Parece quase uma entrada num mundo real em que eu confio em tudo e todos porque fui criado no bem e não conheço o mal, mas quando me aparece o mal à porta começa o primeiro traço de desconfiança. Quase que parece a história de Adão e Eva que quando decidiram comer a maçã, conheceram a serpente má.

Assim, isto vai ao embate da racionalidade dos agentes, serão eles realmente racionais? Já aqui foi dito que cada vez são menos racionais.. Eu cá discordo parcialmente.. Considero sim, que existem condicionismos que levam as pessoas a agir de determinado modo (gostei do exemplo que deu, a justiça), ou seja, a uma desconfiança social.

Outro tipo de análise e ligando o seu artigo à Filosofia, já Platão, "à alguns aninhos", refere o seu Mito da Caverna, ou seja, quando saimos da "caverna" a experiência é perturbadora, a luz é forte, e tudo incomoda, o frio, mas quando nos habituamos às condições, se torna possível viver no ambiente, assim, esta desconfiança social acabará por ser natural e voltando ao início da minha resposta, passa ao lado de alguns.