terça-feira, julho 06, 2010

O BCE a nu

(Artigo de Opinião de Howard Davies publicado no Jornal de Negócios)


A crise na Zona Euro continua longe de estar resolvida. As preocupações dos investidores estão agora concentradas na saúde dos bancos europeus, já que muitos deles têm uma elevada exposição à Grécia e a outros países do sul da Europa com graves problemas orçamentais.

Até agora, os líderes europeus só colocaram gesso nas feridas. Foi criado um fundo de estabilização mas numa base temporária. Foram introduzidos novos acordos para monitorizar os balanços orçamentais dos Estados-membros mas nada pode ser feito face ao volume de dívida pendente. E o Banco Central Europeu (BCE) começou a comprar obrigações governamentais, incluindo da Grécia, a preços muito superiores aos que prevaleceriam no mercado livre.

Esta última medida adoptada pelo BCE levantou uma série de questões por resolver sobre a estrutura do banco e a forma como este toma as suas decisões. Algumas questões que os decisores políticos europeus quiseram esconder estão agora totalmente expostas.

A decisão de comprar, directamente, obrigações gregas não foi unânime. Agora o mundo sabe que Axel Weber, presidente do Bundesbank, votou contra. Foi um voto em 22 mas Weber representa 27% do produto interno bruto (PIB) da Zona Euro, logo não pode ser considerado um membro insignificante. Foi a primeira vez que o presidente do BCE teve que revelar que uma decisão não foi unânime.

Em teoria, sempre soubemos que o BCE poderia, se necessário, tomar decisões com base na regra da maioria. Mas, até agora, esta situação nunca tinha acontecido e não existiam procedimentos para revelar os votos, ao contrário do que acontece na Reserva Federal dos Estados Unidos (Fed) e também no Banco de Inglaterra, onde os votos individuais no Comité de Política Monetária são, normalmente, revelados.

O argumento contra a transparência tem sido que, em circunstâncias especiais, a exposição dos votos individuais dos membros do Conselho de Governadores poderia pressionar os representantes dos Estados-membros. Um governador de um país em recessão poderia sentir-se quase obrigado a votar contra um aumento das taxas de juro, ou a favor de um corte, independentemente das condições gerais da Zona Euro.

Mas a falta de clareza sobre os acordos de votação do BCE pode durar para sempre? Nout Wellink do banco central da Holanda afirmou, explicitamente, que um dia será necessária maior transparência à medida que o BCE alcance maior maturidade. A voz divergente de Weber sobre a compra de obrigações gregas aproximou, e muito, esse dia.

Expôs ainda um outro problema essencial. A estrutura de votação no BCE tem muitos defeitos. Em qualquer sistema federal, o equilíbrio deve ser alcançado entre os que estão encarregues de avaliar as condições económicas em toda a zona monetária e os que representam os interesses de determinadas regiões.

Este problema já foi analisado anteriormente, tanto na Fed, como no Bundesbank. No caso da Fed, sete membros do Conselho em Washington têm uma jurisdição federal e 12 presidentes das reservas regionais votam em rotação e apenas o presidente da reserva de Nova Iorque tem um voto permanente. Assim, o rácio entre votos centrais e votos regionais é de 1:0,7. O Bundesbank tem um acordo semelhante com um balanço central/regional de 1:1,1.

O BCE é diferente por algumas boas razões. É a autoridade monetária de uma federação de Estados soberanos. O peso dos membros nacionais individuais do Conselho de Governadores é muito maior. De facto, o rácio de votos federais e nacionais no BCE é de 1:2,5. E, como cada Estado-membro tem um voto, existe um enorme desequilíbrio entre o peso do voto e o peso do PIB de cada país. A Alemanha tem o mesmo peso que Malta.

O BCE analisou estes problemas mas tudo o que foi alcançado (no Tratado de Nice) foi uma modesta rotação de votação entre os membros à medida que a federação cresce. Isto não vai corrigir os desequilíbrios que existem actualmente.

Até agora, este problema tem atraído pouca atenção. Mas a voz dissidente de Weber abriu a possibilidade dos pequenos países poderem votar contra os membros centrais e importantes. É, teoricamente, possível que os seis membros do Conselho Executivo mais a França, Alemanha e Itália, que representam 65% do PIB da Zona Euro, possam perder a votação para uma coligação de pequenos países.

Isto pode ser muito importante nas decisões sobre as taxas de juro. Pode ainda ser relevante para compras de dívida de Estados-membros com problemas. É muito provável que a dívida grega adquirida pelo BCE não valha o que foi pago por ela. Se a Grécia for forçada a reestruturar a sua dívida e impuser um "corte" aos detentores das suas obrigações, o BCE vai registar prejuízos consideráveis. Esses prejuízos vão recair sobre os Estados-membros da Zona Euro em proporção à sua percentagem do PIB da Zona Euro, apesar do votos serem um por país.

Este peculiar acordo representa um risco futuro para a união monetária e económica, a juntar ao risco de políticas orçamentais descoordenadas e à falta de um equivalente europeu ao Fundo Monetário Internacional. Especialmente quando os mercados estão nervosos, como acontece actualmente, qualquer percepção de que as decisões do BCE podem não ter em consideração os interesses de toda a Zona Euro, ou podem levar os principais países a registar prejuízos significativos, pode, por si só, ser destabilizador. Isto aponta para uma clara necessidade de rever os termos do Tratado de Nice, algo que será difícil de fazer por questões políticas. Mas é cada vez mais evidente que a Zona Euro precisa de uma revisão importante se quiser sobreviver. E os acordos de votação do BCE são um elemento que precisa de ser reformado.

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